quarta-feira, 12 de março de 2014

Condenação


De tijolo, carne e osso

Carpinteiro, pedreiro, peão

É Cícero, Josué e João

Aliciados para construção

Vem do Piauí, Maranhão

Pro curral, penitenciar

Na usina do jirau

Nem comida, nem proteção

Ilusão, produção

No desenvolver acelerado

Do crescimento da nação

É pura condenação



Carmem Borja


sábado, 8 de março de 2014

MIR



A pobreza, a inércia

Todos se foram

Anos da cor do damasco

Dias como o deserto

De frente para o espelho

Dança, equilibrando a cimitarra

O tempo é mais rápido

Que braços e pernas

Na dança da espada



Carmem Borja



domingo, 20 de maio de 2012

O Pirilampo e o Sapo - Leonor de Almeida Lorena e Lencastre - Marquesa de Alorna ( Alcipe- 1750-1789)

Lustroso um astro volante
Rompeu das humildes relvas:
Com seu vôo rutilante
Alegrava à noite as selvas.

Mas de vizinho terreno
Saiu de uma cova um sapo,
E despediu-lhe um sopapo
Que o ensopou em veneno.

Ao morrer exclama o triste:
"Que tens tu de que me acuses?
Que crime em meu seio existe?
Respondeu-lhe: " Por que luzes!"



Fábulas- Lendas, Fábulas e Apólogos- Leonor de Almeida Lorena e Lencastre, Marquesa de Alorna(Alcipe - 1750-1839-

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Punhados de: CORCÉIS CELESTES - Bruce Chatwin

     O imperador Wu-ti (145-87 a.C) foi o mais espetacular ladrão de cavalos da História. Sonhava possuir algumas éguas e garanhões que pertenciam a um monarca obscuro dos confins do mundo conhecido e quase deu cabo da China na sua ânsia de os apanhar.
     [.....] De todos os soberanos que clamavam o Mandato do Céu, Wu-ti encontrava-se entre os menos modestos.
     [.....] No entanto, o seu reino, em relação ao do seu predecessor, Shih-Huang-ti, o Grande Unificador, constituía uma melhoria. Não perseguia os intelectuais nem lhes queimava os livros, preferindo manipular os seus súbditos sem ter de os massacrar. Como todos os fleumáticos, era vítima da dúvida. Porque é que o rio Amarelo havia de querer rebentar com as represas construídas pelos homens?
     - Estás a violar as leis da natureza! - gritou à inundação.
     [.....] A civilização chinesa, como a do Egipto, nasceu nas margens dos grandes rios. Segundo o ritual, o imperador era a Autoridade- Chefe das Águas;o seu governo, uma máquina para controlar a mão de obra; os seus celeiros, o banco nacional, que podia tão bem alimentar quanto esfomear o povo.
     Os decretos imperiais costumavam começar assim: << O mundo funda-se na agricultura>>; o mundo estável - o único concebível - dependia de milhões de pessoas agrilhoadas à terra num trabalho árduo e rotineiro. Daí o horror dos funcionários quando a máquina emperrou. E o seu temor a pensarem nos nómadas às portas das fronteiras do norte. E a Grande Muralha - construída menos para se defenderem dos invasores do que para manterem o seu próprio povo fechado lá dentro.
     Um mar de ervas estende-se para oeste, da Manchúria à planície húngara. Ao longo do horizonte ondulante, nómadas a cavalo conduziam o gado em busca de pastagens. No inverno, abrigavam-se do buran, ou o vento branco invernal, de encontro às montanhas; na primavera, repousavam quando as flores atapetavam o solo. Eram homens corpulentos , colados ao cavalo desde a infância, rostos vermelhos como as suas botas de cabedal. Os elementos que os endureciam também lhes davam uma atitude de espírito inflexível. O movimento perpétuo era o seu credo, não apenas para evitar as desastrosas consequências de ficar quieto, mas como um fim em si. Aos seus olhos o homem nascera para migrar, o sedentarismo era uma perversão de degenerados e isso de lavrar a terra para a cultivar, um crime.[....] .A migração constituía o seu ritual. E a sua música era o uivo dos cães, o tinir dos guizos e o martelar das patas dos cavalos.
     No reinado de Wu-ti, os nómadas que rondavam as fronteiras setentrionais da China eram os Hsiung-nu, os quais voltariam a aparecer sob o nome de Hunos, quatro séculos mais tarde para destruir o Império Romano.
     [.....] Wu-ti tinha de arranjar cavalos para derrotá-los. Cavalos mais velozes que os póneis da estepe, pois naqueles tempos, anteriores aos bombardeamentos aéreos, o poder de qualquer império dependia da cavalaria.
     [.....] A quase cinco mil quilómetros de distância, do outro lado, do Tecto do Mundo, encontravam-se os estábulos do rei de Ferghana. Wu-ti tinha de apossar-se daqueles cavalos a todo custo.Todas as curiosidades do Ocidente, os prestidigitadores ou os ovos de avestruz não valiam nada comparados com as Crias Celestes. Tentou, em primeiro lugar, a diplomacia, oferecendo um cavalo de ouro em troca dos de carne e osso. Mas o povo de Ferghana já se cansara dos presentes chineses e iludiu a questão.
     [.....] Wu-ti soltou todos os criminosos do seu reino e mandou domadores de cavalos e engenheiros hidráulicos para desviar o curso dos rios de Ferghana, organizando igualmente um sistema de abastecimento de arroz para toda a viagem. [....] O seu exército cercou a capital de Ferghana. Os habitantes liquidaram o seu velho e irritável rei e prometeram dar a Li-Kuang-li (general no comando das tropas de Wu-ti), os seus melhores corcéis celestes, se ele levantasse o cerco. Escolheu trinta animais de reprodução ( com a promessa de que todos os anos seriam enviados outros dois) e três mil outros de raça inferior.
     [.....] Que Cavalo Maravilhoso era esse que suava sangue? Após tanto tempo passado, é difícil de dizer. Mas uma coisa é clara: os reis de Ferghana tinham capturado um animal de sangue quente, o que significa , como qualquer entendedor pode confirmar, que provinha do Próximo Oriente. Algures na África do Norte ou no Sudoeste Asiático, tinha existido outrora o antepassado do cavalo árabe.
     [.....] Na mitologia chinesa, o cavalo era o << veículo >> mágico que escoltava os imperadores lendários até o paraíso, algures no Extremo Ocidente. Era o << amigo do dragão>> e <>. Wu-ti procurou esse animal durante toda a sua vida. Em 121 a.C um estranho cavalo tinha emergido do rio Ordos, mas acabou por revelar-se uma decepção. Quando finalmente os verdadeiros corcéis celestes chegaram à China, Wu-ti deve ter tido o pressentimento da sua partida iminente. <> E foi por isso que manteve os cavalos perto do palácio, prontos para a viagem com que sonhara.
     Uma manhã, quando todos os presságios se revelassem propícios, sairia dos seus aposentos. Uma doce melodia estaria a tocar. o imperador subiria então para o carro puxado pelos cavalos do vento. Subiriam no ar suavemente e voariam rumo à terra da paz eterna. A rainha mãe do Ocidente viria acolhe-lo às muralhas de jade e dar-lhe-ia um dos celebrados pêssegos que amadureciam todos os seis mil anos. E a pele enrugada do imperador voltaria a recuperar a maciez da juventude......


Do Livro O Que Faço Eu Aqui? Bruce Chatwin- (1940-1989). A prosa "chatiwiniana", no seu livro póstumo; uma "selecção pessoal" de ensaios, retratos, meditações, relatos de viagens, reunidas durante o seu terrível último ano de vida>>Salman Rushdie, The Observer

sábado, 28 de abril de 2012

A importância do chi kung no Tai Chi Chuan - Wong Kiev Kit

O desenvolvimento da força interior


Tai Chi Chuan sem chi kung não é Tai Chi Chuan, pois nesse caso o Tai Chi Chuan se resumiria a um tipo de exercício suave que talvez oferecesse alguns benefícios em termos de circulação do sangue e divertimento, mas provavelmente não traria a vitalidade e a clareza mental geralmente atribuídas ao treinamento do Tai Chi Chuan

Saúde, combate e espiritualidade

Os estudantes de Tai Chi não podem se defender se praticarem apenas as posições do Tai Chi. Se desejarmos uma defesa pessoal eficiente, teremos de desenvolver a força interior e praticar as aplicações de combate dessa arte marcial. Sem a força interior, não podemos desenvolver nem mesmo uma boa saúde. E a preocupação com a saúde é outra importante razão, além da defesa pessoal, pela qual as pessoas praticam o Tai Chi Chuan. Sem a força interior e as aplicações de combate, O Tai Chi degenera para uma dança; graciosa e elegante, é verdade, mas nada mais do que isso. [.....] Na verdade, o chi kung do Tai Chi e a força interior do Tai Chi muitas vezes são usados como sinônimos, embora tecnicamente falando, o chi kung seja o método, enquanto a força interior é o efeito produzido por esse método.
O chi kung, que literalmente significa " a arte da energia", é um termo abrangente que se refere a centenas de sistemas de treinamento que desenvolvem a energia cósmica para diversas finalidades, principalmente relativas à saúde, a eficiência em combate, à expansão da mente e ao aprimoramento espiritual. É digno de nota o fato de que tanto a pronúncia quanto a palavra chinesa para chi no termo chi kung sejam diferentes daquelas do Tai Chi Chuan. Chi kung é pronunciado "ch'i kung" e é escrito qigong, em chinês românico, enquanto Tai Chi Chuan é pronunciado como "T' ai Ji Chuan" e é escrito Taijiquan. Todavia para a conveniência dos leitores ocidentais, aqui é usada a grafia românica para ambos os termos.
O treinamento do chi kung como parte integrante do Tai Chi Chuan é essencial não apenas para a defesa pessoal eficaz, mas também para a boa saúde. Tai Chi Chuan sem chi kung não é Tai Chi Chuan[.....].
A principal conquista do Tai Chi Chuan é o desenvolvimento espiritual, que eleva a arte, como por exemplo o kung-fu shaolin, muito acima  do nível das artes de combate comuns. O desenvolvimento espiritual no Tai Chi Chuan está intimamente relacionado , ou é sinônimo, do culto taoísta, que não é religioso, pois não envolve dogmas ou adorações e pode ser praticado por pessoas de qualquer religião.O culto taoísta [....], compreende três estágios, ou seja cultivar o jiing (essência) para tornar-se chi(energia), cultiva o chi para tornar-se shen (espírito) e cultivar o shen para retornar ao cosmo. o Chi kung é pois, a ponte que liga o físico(jiing) ao espiritual (shen).



O Livro completo do TAI CHI CHUAN- Wong Kiew Kit- A arte do Tai Chi Chuan, exercita o corpo e a mente com suavidade, regula o fluxo de energia e pode ser usada para beneficiar a saúde e aumentar a longevidade, além da defesa pessoal. Os mestres do passado empregavam o Tai Chi Chuan para cultivar o espírito.O escritor é a quarta geração na linha de sucessão do monge Kiang Nan do Mosteiro Shaolin e grão mestre do Instituto Shaolin Wahnam de Kung-fu.

domingo, 25 de março de 2012

Punhados de: Maria Reiche: O enigma do Pampa - Bruce Chatwin

     [......] Esta planície, o Pampa de Ingenio, está coberta por uma delgada camada de areia e calhaus que apresenta traços de oxidação acastanhados. Tem uma textura de merengue e cobre um leito de aluvião esbranquiçado. Se alguém caminha neste pampa deixa pegadas brancas que durarão séculos.
     Há perto de 2000 anos, os habitantes locais deram-se conta de que podiam servir-se do pampa como de uma gigantesca placa de gravura e, ao longo de várias gerações, fizeram o que é certamente a maior e uma das mais belas obras de arte do mundo. A superfície do deserto é sulcada por uma teia de linhas rectas ligando-se a enormes formas geométricas- triângulos, rectângulos, espirais, ziguezagues flageliformes e trapézios sobrepostos - que se assemelham ao trabalho de um artista abstracto ultra-sensível e supercaro. Há linhas tão estreitas como caminhos de cabras e outras tão largas como pistas de aeroportos. Umas convergem num único ponto, outras estendem-se ao longo de oito quilómetros ou mais, atravessando vales e falésias sempre a direito. Estes desenhos não fazem sentido vistos do solo e nenhuma fotografia aérea lhes faz verdadeiramente justiça, mas, de avioneta, fica-se boquiaberto perante a sua escala e a imaginação de seus criadores.
     Planando no céu, ao sabor das correntes térmicas que se elevam da planície, distinguem-se outras figuras. Além das formas geométricas, há um autêntico jardim zoológico de animais e pássaros, que mais parecem desenhos de Steiberg feitos em grandes dimensões. Vê-se uma baleia. Um pássaro de guano, um pelicano, um beija-flor, outras aves irreconhecíveis e uma fragata com um papo debaixo do bico. Há também um cão. Um macaco-aranha da Amazônia com uma cauda pênsil enrolada para cima numa espiral. Há o desenho de uma aranha ( pertencente à espécie Ricinulei, que copula com as patas traseiras). Há a cabeça de um sapo; uma flor; uma espécie estranha de alga; e uma animal meio ave meio-serpente. Há igualmente um lagarto cujo corpo está seccionado em dois pela estrada.
     As linhas do Pampa de Ingenio foram descobertas nos fins de 1920 pelos serviços topográficos aéreos do Peru.
     [.....} Se os seus criadores não possuíam aviões e, por conseguinte, não podiam admirá-la adequadamente, qual era a finalidade desta obra colossal? Como podia um povo de simples camponeses e guerreiros ter dominado àquele ponto a técnica da topografia sem conhecimentos matemáticos de alto nível?
     Por sorte, a visita de Kosok coincidiu com o solstício de Inverno, a 21 de Junho, o dia mais curto do ano no hemisfério sul. Ao pôr do Sol, quando atravessava o pampa no sítio em que várias linhas estavam orientadas na direcção leste oeste, teve a grande alegria de notar que o Sol tocava um ponto onde uma das linhas alcançava o horizonte. Concluiu assim que essa linha tinha sido traçada para determinar a data do solstício de Inverno. Prosseguindo aquele raciocínio, chegou à conclusão de que todas as linhas e formas geométricas eram utilizadas como pontos de referência a fim de calcular o nascer e o por do Sol, da Lua e das estrelas. Os Nazcas, afirmou, tinham imprimido no deserto "o maior livro de astronomia do mundo".
     [.....] Era um modesto império de guerreiros e agricultores que tinham prosperado e atingido o seu declínio entre os séculos II e VIII da nossa era. Desenvolvera-se em duas direcções: através da cordilheira andina até as florestas, com os seus beija-flores, macacos e aranhas; e no sentido da costa, onde ilhas cobertas de guano flutuam no mar revolto e prateado. Ninguém conhece o verdadeiro nome do povo Nazca. Primeiro, fora absorvidos pelos Incas, e mesmo por impérios precedentes, e, a seguir, os espanhóis massacraram as populações desses vales, assegurando-lhes o anonimato do esquecimento. Pode-se apenas reconstituir a sua vida a partir dos objectos que enterraram juntamente com os mortos, o que constitui uma tarefa arriscada, pois a violação de sepulturas é um passatempo nacional e os ladrões (os huaceros) já pilharam quase todos os cemitérios. As vertentes dos vales estão crivadas dos buracos que fizeram.
     Nos seus campos retalhados, irrigados anualmente pela torrente dos Andes, os Nazcas cultivaram a batata, a batata doce, o abacate, a pimenta, o feijão de lima, o milho, a mandioca, o ananás, a goiaba e um grande número de cereais, frutos e legumes pouco conhecidos.Dispunham de barcos de pesca e de jangadas, com os quais explorava mal um dos melhores lugares de pesca do mundo. Como carne, comiam lamas e grandes quantidades de porquinhos-da-índia. Teciam e tricotavam alguns dos têxteis mais belos que jamais se viu. Utilizavam cada centímetro quadrado das terras do vale para cultivar e implantavam as casas, templos e cemitérios na orla desértica.
     Em termos globais, o povo Nazca parece ter sido alegre e bastante democrático, consciente dos aspectos cósmicos da vida e de temperamento fundamentalmente diferente dos seus vizinhos do Norte, os sinistros Mochicas. Contudo, partilhavam pelo menos um dos seus costumes mais desagradáveis - o culto das cabeças decepadas, de preferência a cabeça de um inimigo derrotado.
     [.....] Maria Reiche chegou ao Peru em 1932.
     [.....] Após ter vivido sete anos no Peru, encontrou Paul Kosok, que tinha acabado de descobrir as linhas, mas que encarava a hipótese de regressar aos EUA. Quando ele lhe mostrou o pampa e sugeriu que pusesse em prática os seus conhecimentos de astronomia, ela deu-se conta de que encontrara a obra da sua vida.
     Durante quase quarenta anos, passou a maior parte do tempo no deserto. Dorme sozinha, ao relento, numa cama de pedras, pois quase nunca chove.[.....]


Do Livro O Que Faço Eu Aqui?, livro póstumo de Bruce Chatwin, Editora Quetzal.Um dos mais aclamados escritores da literatura de viagens de sempre. Foi jornalista do Sunday Times Magazine."Toda minha vida foi uma procura do miraculoso". Bruce Chatwin, 1983 . Seu livro Na Patagônia, um clássico da literatura contemporânea, que segundo  The Guardian, "conferiu novos contornos à literatura de viagem".

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Punhados de : Rakushisha - Adriana Lisboa - romance haikai.

17 de junho


     Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela.
     O cachorro parece um labrador e olha para mim quando me aproximo.
     Tem uma cara afável. Somos ocidentais nós dois, amigo. Se bem que talvez você tenha nascido aqui, não é? Nasceu? No canil de um Criador? Claro, onde mais, você me responde, com a paciência dos labradores.
     Eu não nasci aqui. Não sei se você está muito interessado em saber. Sou do outro lado do planeta. Pode-se dizer que vim escondida dentro da bagagem de outra pessoa. É como se eu tivesse entrado clandestina, apesar do visto no meu passaporte. De fininho, para que não me vissem, para que não vissem as coisas invisíveis que eu trazia na mala. Que ninguém me veja ainda, que ninguém suspeite. Nesse sentido sou bem mais ocidental do que você, amigo de capa amarela. Não pertenço a este lugar.
     E por que exatamente estou aqui, então, você poderia me perguntar se tivéssemos mais tempo para trocar olhares, se a sua coleira e o seu dono já não fossem te puxando para as suas obrigações - sejam quais elas forem, acompanhar, guiar, divertir.
     Não sei muito bem, para ser honesta. Estive reaprendendo a andar. Estou reaprendendo a andar. Depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal quem somos nós se não menos do que anônimos aqui. Abriu-se esta porta. Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não seis se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. Se vim para lembrar - se vim para esquecer. Se vim para morrer ou para me vacinar. Talvez eu descubra. Talvez nunca seja possível descobrir, desvelar, levantar o toldo, remover qualquer traço de ilusão da ilusão de caminhar.
     Seja como for. É só colocar um pé depois do outro.
     Um pé depois do outro. Ignorar o peso das pernas. Afinal este corpo é uma máquina que não tem motivos para estar apresentando defeito, ainda não, este corpo viu pouco mais de três décadas, é possível que esteja programado para muito mais. Está? Não sei, não me interessa saber, mas é possível que sim. Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e as sinapses transmitindo a intenção - a intenção não, a determinação, a ordem do cérebro. Esse déspota. Faça, ele diz. Mova-se. E as pernas se movem. Isso. Deve ser assim bem simples. Mova-se como um cão labrador de capa amarela atravessando o sinal conduzido por seu dono.
     Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso das minhas pernas.
     O guarda-chuva tapa um pedaço do céu e a chuva é fraca, mas insisti em sair de sandálias e meu pé está ficando molhado. Paciência. Não é o mais importante, nem de longe. Que eles estejam secos ou que estejam molhados. Sinto a umidade um pouco fria da pele. Importante é que eles continuem se alternando sobre a calçada, mesmo que lentamente. [......}


Rakushisha - Adriana Lisboa - Escritora carioca, nascida em 1970, morou em Brasília, Paris e Avignon.Estudou Música, Literatura e foi flautista, cantora e professora. Vive em Denver. Este é o seu terceiro romance.Da  série língua comum, publicado por Quetzal Editores.- Lisboa - Portugal." Foi na Rakushisha - cabana dos diospiros caídos - , nos arredores de Kioto, que o poeta viajante Matsuo Bashô, imortalizado pelos seus haikai, se hospedou na sua última viagem e redigiu um dos seus diários. E foi no metro do Rio de Janeiro que Haruki e Celina se conheceram. Ele folheava um livro japonês, de cuja ilustração fora incumbido;ela era uma mulher triste e etérea, pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana, que se aproximou dele com curiosidade pelo escrito exótico.[.....]. As vozes dos dois protagonistas e os versos do poeta japonês entretecem-se num registro depurado,  a que não falta nem sobra uma só palavra, que faz de Rakushisha um romance haikai.