[......] Esta planície, o Pampa de Ingenio, está coberta por uma delgada camada de areia e calhaus que apresenta traços de oxidação acastanhados. Tem uma textura de merengue e cobre um leito de aluvião esbranquiçado. Se alguém caminha neste pampa deixa pegadas brancas que durarão séculos.
Há perto de 2000 anos, os habitantes locais deram-se conta de que podiam servir-se do pampa como de uma gigantesca placa de gravura e, ao longo de várias gerações, fizeram o que é certamente a maior e uma das mais belas obras de arte do mundo. A superfície do deserto é sulcada por uma teia de linhas rectas ligando-se a enormes formas geométricas- triângulos, rectângulos, espirais, ziguezagues flageliformes e trapézios sobrepostos - que se assemelham ao trabalho de um artista abstracto ultra-sensível e supercaro. Há linhas tão estreitas como caminhos de cabras e outras tão largas como pistas de aeroportos. Umas convergem num único ponto, outras estendem-se ao longo de oito quilómetros ou mais, atravessando vales e falésias sempre a direito. Estes desenhos não fazem sentido vistos do solo e nenhuma fotografia aérea lhes faz verdadeiramente justiça, mas, de avioneta, fica-se boquiaberto perante a sua escala e a imaginação de seus criadores.
Planando no céu, ao sabor das correntes térmicas que se elevam da planície, distinguem-se outras figuras. Além das formas geométricas, há um autêntico jardim zoológico de animais e pássaros, que mais parecem desenhos de Steiberg feitos em grandes dimensões. Vê-se uma baleia. Um pássaro de guano, um pelicano, um beija-flor, outras aves irreconhecíveis e uma fragata com um papo debaixo do bico. Há também um cão. Um macaco-aranha da Amazônia com uma cauda pênsil enrolada para cima numa espiral. Há o desenho de uma aranha ( pertencente à espécie Ricinulei, que copula com as patas traseiras). Há a cabeça de um sapo; uma flor; uma espécie estranha de alga; e uma animal meio ave meio-serpente. Há igualmente um lagarto cujo corpo está seccionado em dois pela estrada.
As linhas do Pampa de Ingenio foram descobertas nos fins de 1920 pelos serviços topográficos aéreos do Peru.
[.....} Se os seus criadores não possuíam aviões e, por conseguinte, não podiam admirá-la adequadamente, qual era a finalidade desta obra colossal? Como podia um povo de simples camponeses e guerreiros ter dominado àquele ponto a técnica da topografia sem conhecimentos matemáticos de alto nível?
Por sorte, a visita de Kosok coincidiu com o solstício de Inverno, a 21 de Junho, o dia mais curto do ano no hemisfério sul. Ao pôr do Sol, quando atravessava o pampa no sítio em que várias linhas estavam orientadas na direcção leste oeste, teve a grande alegria de notar que o Sol tocava um ponto onde uma das linhas alcançava o horizonte. Concluiu assim que essa linha tinha sido traçada para determinar a data do solstício de Inverno. Prosseguindo aquele raciocínio, chegou à conclusão de que todas as linhas e formas geométricas eram utilizadas como pontos de referência a fim de calcular o nascer e o por do Sol, da Lua e das estrelas. Os Nazcas, afirmou, tinham imprimido no deserto "o maior livro de astronomia do mundo".
[.....] Era um modesto império de guerreiros e agricultores que tinham prosperado e atingido o seu declínio entre os séculos II e VIII da nossa era. Desenvolvera-se em duas direcções: através da cordilheira andina até as florestas, com os seus beija-flores, macacos e aranhas; e no sentido da costa, onde ilhas cobertas de guano flutuam no mar revolto e prateado. Ninguém conhece o verdadeiro nome do povo Nazca. Primeiro, fora absorvidos pelos Incas, e mesmo por impérios precedentes, e, a seguir, os espanhóis massacraram as populações desses vales, assegurando-lhes o anonimato do esquecimento. Pode-se apenas reconstituir a sua vida a partir dos objectos que enterraram juntamente com os mortos, o que constitui uma tarefa arriscada, pois a violação de sepulturas é um passatempo nacional e os ladrões (os huaceros) já pilharam quase todos os cemitérios. As vertentes dos vales estão crivadas dos buracos que fizeram.
Nos seus campos retalhados, irrigados anualmente pela torrente dos Andes, os Nazcas cultivaram a batata, a batata doce, o abacate, a pimenta, o feijão de lima, o milho, a mandioca, o ananás, a goiaba e um grande número de cereais, frutos e legumes pouco conhecidos.Dispunham de barcos de pesca e de jangadas, com os quais explorava mal um dos melhores lugares de pesca do mundo. Como carne, comiam lamas e grandes quantidades de porquinhos-da-índia. Teciam e tricotavam alguns dos têxteis mais belos que jamais se viu. Utilizavam cada centímetro quadrado das terras do vale para cultivar e implantavam as casas, templos e cemitérios na orla desértica.
Em termos globais, o povo Nazca parece ter sido alegre e bastante democrático, consciente dos aspectos cósmicos da vida e de temperamento fundamentalmente diferente dos seus vizinhos do Norte, os sinistros Mochicas. Contudo, partilhavam pelo menos um dos seus costumes mais desagradáveis - o culto das cabeças decepadas, de preferência a cabeça de um inimigo derrotado.
[.....] Maria Reiche chegou ao Peru em 1932.
[.....] Após ter vivido sete anos no Peru, encontrou Paul Kosok, que tinha acabado de descobrir as linhas, mas que encarava a hipótese de regressar aos EUA. Quando ele lhe mostrou o pampa e sugeriu que pusesse em prática os seus conhecimentos de astronomia, ela deu-se conta de que encontrara a obra da sua vida.
Durante quase quarenta anos, passou a maior parte do tempo no deserto. Dorme sozinha, ao relento, numa cama de pedras, pois quase nunca chove.[.....]
Do Livro O Que Faço Eu Aqui?, livro póstumo de Bruce Chatwin, Editora Quetzal.Um dos mais aclamados escritores da literatura de viagens de sempre. Foi jornalista do Sunday Times Magazine."Toda minha vida foi uma procura do miraculoso". Bruce Chatwin, 1983 . Seu livro Na Patagônia, um clássico da literatura contemporânea, que segundo The Guardian, "conferiu novos contornos à literatura de viagem".