terça-feira, 14 de setembro de 2010

As Horas Nuas- Lygia Fagundes Telles

... Era domingo. A noite seria de lua cheia, segundo Dionísia que servia pão feito em casa no café da manhã. Partiu ao meio o pão que tirou do forno e deixou a metade na minha vasilha. O cheiro de pão quente me levou a um tempo que eu sabia ser anterior ao período da minha casa romana, fiquei elétrico. Com ganas de me atirar ao pão, antiquissimo o apetite. E comecei a mastigar lentamente, sem a menor pressa, a saliva abundante trabalhando cada migalha como se nela restasse algum resíduo desse tempo.
    "Eu vi a vida nascer da morte", soprou uma voz. Fiquei em suspenso diante de duas grandes mãos da cor do ocre, trabalhando pacientes na argila como eu próprio trabalhara no pão. Assim que me aproximei elas se esvaneceram. Ficou a vasilha do gato com um pouco de farelo no fundo.
      __   São Lucas é o santo dia, anunciou Dionísia cortando as laranjas para o sumo de frutas.
      Diogo continuava enredado nos seus cálculos domésticos enquanto Rosona excitada, procurava o anel de esmeralda que tinha esquecido não sabia onde. Só eu ouvi que São Lucas era o santo do domingo.
      __   Perdi meu anel Diú! Aquela minha esmeralda....
      __   Não perdeu não, deve estar por aí mesmo.
      Ela enlaçou Dionísia. Imobilizou-se de repente num susto: lembrava-se agora do sonho da véspera. Baixou a voz pesada de intenções. Era com a criada que gostava de perambular por essa zona incerta.
      __ Fecha a torneira, querida, escuta.
      Acomodei-me na cadeira e escutei. Noite escuríssima. Viu-se numa em meio das trevas, mergulhada até o pescoço na água tão gelada que era como se estivesse num cubo de gelo. Começou então a chorar, chorar __ e fez o gesto, roçando a ponta dos dedos nas faces, imitando as lágrimas que desciam sem parar, lágrimas tão ardentes que aos poucos foram derretendo o gelo, varando a superfície dura até que a crosta se fez em pedaços e ela pode se libertar aquecida, mas não fora mesmo uma coisa deslumbrante? Hem?!.....Se salvar no próprio pranto.
      Dionísia despejou o sumo em dois copos. Abriu a torneira e lavou pensativamente as mãos. Concentrou o olhar na pia. Pediu detalhes, e a água? Era suja ou limpa? Água corrente ou parada?
      Fugi da interpretação e fui espairecer na saleta onde Diogo esqueceu o televisor ligado. Um cômico macaqueava um macaco sem a graça do macaco. Quando Rosona retornou à sala, eu dormia acordado na minha almofada. Alisou o pelo do meu pescoço e disse que por falar em água, ia me dar um banho, eu estava com cheiro de jaula. Olhei-a nos olhos. Deslavada mentira mas deixei-me levar. E se apanhasse uma pneumonia? se morresse? Na rota convencional da fitas fantásticas, toda fera maldita vira gente na morte......
       Sair desta vida no nível do chão. Sem horizonte, fechado por muros, móveis e portas. A longa convivência com o rodapé. Com os sapatos, identifico os donos dos sapatos antes mesmo de encará-los ou de ouvir suas vozes......
       .......Rosona me agarra de novo. Sossega Rahul, que não vou lavar o gatinho mais limpo do mundo, disse entrando na sala de banho......................




Uma atriz decadente e um gato são os personagens centrais deste romance. Rahul é um gato que sonha com o Homem, como o homem sonha com Deus. Abandonada só e infeliz, Rosa Ambrósia rumina a memória da dor, levanta a poeira das lembranças. Onde está o tempo está o drama: ao mobilizar suas paixões presentes e passadas, Rosa está destinada a romper o labirinto que a aprisiona e renascer. Segundo Fábio Lucas em As Horas Nuas estão presentes as grandes qualidades da autora. "Sua arte está no controle da narrativa, cujo efeito cênico é obtido com o rigor e o cálculo de um enxadrista. O racional, portanto se entrelaça com a rotação do insólito, do maravilhoso, do mágico ___ um vasto território de magia, pois sua faculdade mito poética se apóia numa imaginação cintilante."

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Demônio Me Disse - Giovanni Papini- Punhados

           Durante toda a minha vida somente cinco vezes tive ocasião de falar com o Diabo, mas estou certo de que, entre os vivos, sou eu quem mais íntimamente o conhece e com quem ele se mostra mais afável. Trata-me -com certo orgulho que não tento dissimular - com uma benévola condescendência que chega às vezes a comover-me. Quando estou em sua companhia limito-me a ouvi-lo.......O Diabo, pelo menos como me tem aparecido até agora, é uma figura fora do comum. É alto, muito pálido, ainda bastante jovem, mas com essa juventude que viveu demasiado e que é mais triste que a velhice. O rosto muito branco e comprido nada tem de particular a não ser a sua boca sutil, fina e apertada; tem uma ruga única e profundíssima, que se alça perpendicularmente entre as sobrancelhas e se perde quase na raiz dos cabelos.......É difícil que nestes tempos que correm, se decida a vir à terra. Um dia confessou-me tristemente:
            - Agora os homens não me interessam mais. Compram-me por pouco, mas valem cada vez menos. Não tem nem medula, nem alma, nem coragem. Talvez nem sequer tenham sangue suficientemente vermelho para firmar o contrato.........
             Nunca conheci ninguém mais indulgente que o Diabo. Conhece tão profundamente a mesquinhez, a velhacaria, a sujidade e bestialidade humanas, que nada o espanta nem desgosta. É pacífico e sorridente como um sábio antigo, e às vezes me parece mais cristão que todos os cristãos do mundo.....
              Encontrei-o, da última vez, numa dessas ruas solitárias dos arrabaldes de Florença, apertadas entre velhos muros, por cima dos quais apontam as oliveiras. Ia lendo um livro de capa negra e ria consigo mesmo, como só ele sabe rir. Aproximei-me e, apenas me viu, fechou o livro, segurou-me no braço e começou a dizer-me:
              _ Conheço há séculos este livrinho a Bíblia; releio-o de quando em quando, se tenho necessidade de por-me de bom humor. A que eu leio agora é em inglês, e notei que o inglês se presta admiravelmente para o Antigo Testamento, ao passo que prefiro o italiano para o Novo.
              ..........Como foi que Adão e Eva  apesar de terem comido o fruto proibido, não se converteram em deuses, mas foram arrojados por seu Deus do belo jardim?
              .......... Se Adão e Eva tivessem comido todos os frutos da árvore maravilhosa, o Grande Velho, já não teria tido poder para arrojá-los do Paraíso. Não tiveram ânimo para comer rapidamente de todos os outros frutos, e eu lhes disse , não basta comer alguns era necessário despojar a árvore toda,  para adquirir toda a sabedoria.
             O homem portanto perdeu, uma magnífica oportunidade para converter-se em Deus e eu perdi uma das poucas probabilidades de voltar ao céu.........................................