... Era domingo. A noite seria de lua cheia, segundo Dionísia que servia pão feito em casa no café da manhã. Partiu ao meio o pão que tirou do forno e deixou a metade na minha vasilha. O cheiro de pão quente me levou a um tempo que eu sabia ser anterior ao período da minha casa romana, fiquei elétrico. Com ganas de me atirar ao pão, antiquissimo o apetite. E comecei a mastigar lentamente, sem a menor pressa, a saliva abundante trabalhando cada migalha como se nela restasse algum resíduo desse tempo.
"Eu vi a vida nascer da morte", soprou uma voz. Fiquei em suspenso diante de duas grandes mãos da cor do ocre, trabalhando pacientes na argila como eu próprio trabalhara no pão. Assim que me aproximei elas se esvaneceram. Ficou a vasilha do gato com um pouco de farelo no fundo.
__ São Lucas é o santo dia, anunciou Dionísia cortando as laranjas para o sumo de frutas.
Diogo continuava enredado nos seus cálculos domésticos enquanto Rosona excitada, procurava o anel de esmeralda que tinha esquecido não sabia onde. Só eu ouvi que São Lucas era o santo do domingo.
__ Perdi meu anel Diú! Aquela minha esmeralda....
__ Não perdeu não, deve estar por aí mesmo.
Ela enlaçou Dionísia. Imobilizou-se de repente num susto: lembrava-se agora do sonho da véspera. Baixou a voz pesada de intenções. Era com a criada que gostava de perambular por essa zona incerta.
__ Fecha a torneira, querida, escuta.
Acomodei-me na cadeira e escutei. Noite escuríssima. Viu-se numa em meio das trevas, mergulhada até o pescoço na água tão gelada que era como se estivesse num cubo de gelo. Começou então a chorar, chorar __ e fez o gesto, roçando a ponta dos dedos nas faces, imitando as lágrimas que desciam sem parar, lágrimas tão ardentes que aos poucos foram derretendo o gelo, varando a superfície dura até que a crosta se fez em pedaços e ela pode se libertar aquecida, mas não fora mesmo uma coisa deslumbrante? Hem?!.....Se salvar no próprio pranto.
Dionísia despejou o sumo em dois copos. Abriu a torneira e lavou pensativamente as mãos. Concentrou o olhar na pia. Pediu detalhes, e a água? Era suja ou limpa? Água corrente ou parada?
Fugi da interpretação e fui espairecer na saleta onde Diogo esqueceu o televisor ligado. Um cômico macaqueava um macaco sem a graça do macaco. Quando Rosona retornou à sala, eu dormia acordado na minha almofada. Alisou o pelo do meu pescoço e disse que por falar em água, ia me dar um banho, eu estava com cheiro de jaula. Olhei-a nos olhos. Deslavada mentira mas deixei-me levar. E se apanhasse uma pneumonia? se morresse? Na rota convencional da fitas fantásticas, toda fera maldita vira gente na morte......
Sair desta vida no nível do chão. Sem horizonte, fechado por muros, móveis e portas. A longa convivência com o rodapé. Com os sapatos, identifico os donos dos sapatos antes mesmo de encará-los ou de ouvir suas vozes......
.......Rosona me agarra de novo. Sossega Rahul, que não vou lavar o gatinho mais limpo do mundo, disse entrando na sala de banho......................
Uma atriz decadente e um gato são os personagens centrais deste romance. Rahul é um gato que sonha com o Homem, como o homem sonha com Deus. Abandonada só e infeliz, Rosa Ambrósia rumina a memória da dor, levanta a poeira das lembranças. Onde está o tempo está o drama: ao mobilizar suas paixões presentes e passadas, Rosa está destinada a romper o labirinto que a aprisiona e renascer. Segundo Fábio Lucas em As Horas Nuas estão presentes as grandes qualidades da autora. "Sua arte está no controle da narrativa, cujo efeito cênico é obtido com o rigor e o cálculo de um enxadrista. O racional, portanto se entrelaça com a rotação do insólito, do maravilhoso, do mágico ___ um vasto território de magia, pois sua faculdade mito poética se apóia numa imaginação cintilante."
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