domingo, 26 de fevereiro de 2012

Punhados de : Rakushisha - Adriana Lisboa - romance haikai.

17 de junho


     Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela.
     O cachorro parece um labrador e olha para mim quando me aproximo.
     Tem uma cara afável. Somos ocidentais nós dois, amigo. Se bem que talvez você tenha nascido aqui, não é? Nasceu? No canil de um Criador? Claro, onde mais, você me responde, com a paciência dos labradores.
     Eu não nasci aqui. Não sei se você está muito interessado em saber. Sou do outro lado do planeta. Pode-se dizer que vim escondida dentro da bagagem de outra pessoa. É como se eu tivesse entrado clandestina, apesar do visto no meu passaporte. De fininho, para que não me vissem, para que não vissem as coisas invisíveis que eu trazia na mala. Que ninguém me veja ainda, que ninguém suspeite. Nesse sentido sou bem mais ocidental do que você, amigo de capa amarela. Não pertenço a este lugar.
     E por que exatamente estou aqui, então, você poderia me perguntar se tivéssemos mais tempo para trocar olhares, se a sua coleira e o seu dono já não fossem te puxando para as suas obrigações - sejam quais elas forem, acompanhar, guiar, divertir.
     Não sei muito bem, para ser honesta. Estive reaprendendo a andar. Estou reaprendendo a andar. Depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal quem somos nós se não menos do que anônimos aqui. Abriu-se esta porta. Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não seis se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. Se vim para lembrar - se vim para esquecer. Se vim para morrer ou para me vacinar. Talvez eu descubra. Talvez nunca seja possível descobrir, desvelar, levantar o toldo, remover qualquer traço de ilusão da ilusão de caminhar.
     Seja como for. É só colocar um pé depois do outro.
     Um pé depois do outro. Ignorar o peso das pernas. Afinal este corpo é uma máquina que não tem motivos para estar apresentando defeito, ainda não, este corpo viu pouco mais de três décadas, é possível que esteja programado para muito mais. Está? Não sei, não me interessa saber, mas é possível que sim. Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e as sinapses transmitindo a intenção - a intenção não, a determinação, a ordem do cérebro. Esse déspota. Faça, ele diz. Mova-se. E as pernas se movem. Isso. Deve ser assim bem simples. Mova-se como um cão labrador de capa amarela atravessando o sinal conduzido por seu dono.
     Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso das minhas pernas.
     O guarda-chuva tapa um pedaço do céu e a chuva é fraca, mas insisti em sair de sandálias e meu pé está ficando molhado. Paciência. Não é o mais importante, nem de longe. Que eles estejam secos ou que estejam molhados. Sinto a umidade um pouco fria da pele. Importante é que eles continuem se alternando sobre a calçada, mesmo que lentamente. [......}


Rakushisha - Adriana Lisboa - Escritora carioca, nascida em 1970, morou em Brasília, Paris e Avignon.Estudou Música, Literatura e foi flautista, cantora e professora. Vive em Denver. Este é o seu terceiro romance.Da  série língua comum, publicado por Quetzal Editores.- Lisboa - Portugal." Foi na Rakushisha - cabana dos diospiros caídos - , nos arredores de Kioto, que o poeta viajante Matsuo Bashô, imortalizado pelos seus haikai, se hospedou na sua última viagem e redigiu um dos seus diários. E foi no metro do Rio de Janeiro que Haruki e Celina se conheceram. Ele folheava um livro japonês, de cuja ilustração fora incumbido;ela era uma mulher triste e etérea, pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana, que se aproximou dele com curiosidade pelo escrito exótico.[.....]. As vozes dos dois protagonistas e os versos do poeta japonês entretecem-se num registro depurado,  a que não falta nem sobra uma só palavra, que faz de Rakushisha um romance haikai.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

SUBURBIOS - Pablo Neruda

Celebro las virtudes y los vicios
de pequenos burgueses suburbanos
que sobrepasan el refrigerador
y colocan sombrillas de color
junto al jardín que anhela una piscina:
este ideal del lujo soberano
para mi hermano pequeño burgués
que eres tú que soy yo, vamos diciendo
la verdad verdadera en este mundo.


La verdad de aquel sueño a corto plazo
sin oficina el sábado, por fin,
los despiadados jefes que produce
el hombre en los graneros insolubles
donde siempre nacieron los verdugos
que crecen y se multiplican siempre.


Nosotros, héroes y pobres diablos,
débiles, fanfarrones, inconclusos,
y capaces de todo lo imposible
siempre que no se vea ni se oiga,
donjuanes y donjuanas pasajeros
en la fugacidad de un corredor
o de un tímido hotel de pasajeros.
Nosotros com pequeñas vanidades
y resistidas ganas de subir,
de llegar donde todos han llegado
porque así nos parece que es el mundo:
una pista infinita de campeones
y en un rincón nosotros, olvidados
por culpa de tal vez todos los otros
porque eran tan parecidos a nosotros
hasta que se robaron sus laureles,
sus medallas, sus títulos, sus nombres.


Poema do Livro O Coração Amarelo- Pablo Neruda (1904-1973)- Autor de mais de quarenta livros de poesia, deixou ao morrer oito livros inéditos, escritos quase simultaneamente: O Coração Amarelo, Livro das perguntas, Elegia, A rosa separada, Jardim de Inverno, 2000, O Mar e os sinos e Defeitos escolhidos.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

AS VEIAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA - Eduardo Galeano

A POBREZA DO HOMEM COMO RESULTADO DA RIQUEZA DA TERRA

A Distribuição de Funções entre o Cavalo e o Cavaleiro


     Escreveu Karl Marx, no primeiro tomo de O Capital: " O descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a cruzada de extermínio, escravização e sepultamento nas minas da população aborígene, o começo da conquista e o saqueio das Índias Orientais, a conversão do continente africano em local de caça de escravos negros; são todos feitos que assinalaram os alvores da era de produção capitalista. Estes processos idílicos representam outros tantos fatores fundamentais no movimento da acumulação original".
     O saqueio,  interno e externo, foi o meio mais importante para a acumulação primitiva de capitais que, desde a Idade Média, possibilitou o surgimento de uma nova etapa histórica na evolução econômica mundial.À medida que se estendia a economia monetária, o intercâmbio desigual ia abarcando cada vez mais segmentos sociais e regiões do planeta. Ernest Mandel somou o valor do ouro e da prata arrancados da América até 1660, o espólio da Indonésia pela Companhia Holandesa das Índias Orientais desde 1650 até 1780, os lucros do capital francês no tráfico de escravos durante o século XVII, os ganhos obtidos pelo trabalho escravo nas Antilhas britânicas e o saque inglês da Índia durante meio século: o resultado supera o valor do capital investido em todas as indústrias européias até 1800. Mandel observa que esta gigantesca massa de capitais criou um ambiente favorável aos investimentos na Europa, estimulou o "espírito de empresa" e financiou diretamente o estabelecimento de manufaturas, dando um grande impulso à revolução industrial. Mas ao mesmo tempo, a formidável concentração internacional da riqueza em benefício da Europa impediu, nas regiões saqueadas o salto para a acumulação de capital industrial. " A dupla tragédia dos países em desenvolvimento consiste em que não só foram vítimas desde processo de concentração internacional, mas que também, posteriormente, tiveram de compensar o atraso industrial, ou seja, realizar a acumulação original de capital industrial, num mundo inundado pelos artigos manufaturados por uma indústria já madura, a ocidental".
     As colônias americanas foram descobertas, conquistadas e colonizadas dentro do processo da expansão do capital comercial. A Europa estendia seus braços para alcançar o mundo inteiro. Nem a Espanha nem Portugal receberam os benefícios do envolvente avanço do mercantilismo capitalista, embora fossem suas colônias as que, em grande parte, proporcionaram o ouro e a prata, que nutririam esta expansão. Como vimos, se bem que os metais preciosos da América iluminassem a enganosa fortuna de uma nobreza espanhola, que vivia sua Idade Média tardiamente e na contramão da história, simultaneamente selaram a ruína da Espanha nos séculos seguintes. Foram outras as comarcas da Europa que puderam incubar o capitalismo moderno, valendo-se em grande parte, da expropriação dos povos primitivos da América. A rapinagem dos tesouros acumulados sucedeu a exploração sistemática, nos socavãos e jazidas, do trabalho forçado dos indígenas e escravos negros, arrancados da África pelos traficantes.
     A Europa necessitava de ouro e prata. Os meios de pagamentos em circulação se multiplicavam sem cessar e era preciso alimentar os movimentos do capitalismo na hora do parto: os burgueses se apoderavam das cidades e fundavam bancos, produziam e trocavam mercadorias, conquistavam novos mercados. Ouro, prata, açúcar: a economia colonial, mais abastecedora do que consumidora, estruturou-se em função das necessidades do mercado europeu, e a seu serviço. O valor das exportações latino-americanas de metais preciosos foi, durante prolongados períodos do século XVI, quatro vezes maior que o valor das importações, compostas por escravos, sal e artigos de luxo. Os recursos fluíam para que os acumulassem as nações européias emergentes do outro lado do mar. Esta era a missão fundamental que trouxeram os pioneiros, embora além disso, aplicassem o Evangelho quase tão frequentemente como o chicote, aos índios agonizantes. A estrutura econômica das colônias ibéricas nasceu subordinada ao mercado externo e, em consequência, centralizada em torno do setor exportador, que concentrava renda e poder.
     Ao longo do processo, desde a etapa dos metais à provisão de alimentos, cada região se identificou com o que produzia, e produzia o que dela se esperava na Europa: cada produto, carregado nos porões dos navios que sulcavam o oceano, converteu-se numa vocação e num destino. A divisão internacional dotrabalho, ta l como foi surgindo junto com o capitalismo, parecia-se mais com a distribuição de funções entre o cavaleiro e o cavalo, como diz Paul Baran. Os mercados do mundo colonial cresceram como meros apêndices do mercado interno do capitalismo que emergia.




Punhados do Livro: As Veias Abertas da América Latina - Eduardo Galeano- " Desnuda o saque ao nosso continente que persiste desde o Descobrimento. Narra com clareza que as metrópoles podem mudar de sede, mas sua sede permanece insaciável."  Galeno de Freitas 
É a um só tempo, um e vários livros: história do saque continental desde os tempos das caravelas até os aviões a jato, o livro constitui síntese de economia política e manual de desditas". Hugo Neira- Expresso , Lima, Peru .