17 de junho
Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela.
O cachorro parece um labrador e olha para mim quando me aproximo.
Tem uma cara afável. Somos ocidentais nós dois, amigo. Se bem que talvez você tenha nascido aqui, não é? Nasceu? No canil de um Criador? Claro, onde mais, você me responde, com a paciência dos labradores.
Eu não nasci aqui. Não sei se você está muito interessado em saber. Sou do outro lado do planeta. Pode-se dizer que vim escondida dentro da bagagem de outra pessoa. É como se eu tivesse entrado clandestina, apesar do visto no meu passaporte. De fininho, para que não me vissem, para que não vissem as coisas invisíveis que eu trazia na mala. Que ninguém me veja ainda, que ninguém suspeite. Nesse sentido sou bem mais ocidental do que você, amigo de capa amarela. Não pertenço a este lugar.
E por que exatamente estou aqui, então, você poderia me perguntar se tivéssemos mais tempo para trocar olhares, se a sua coleira e o seu dono já não fossem te puxando para as suas obrigações - sejam quais elas forem, acompanhar, guiar, divertir.
Não sei muito bem, para ser honesta. Estive reaprendendo a andar. Estou reaprendendo a andar. Depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal quem somos nós se não menos do que anônimos aqui. Abriu-se esta porta. Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não seis se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. Se vim para lembrar - se vim para esquecer. Se vim para morrer ou para me vacinar. Talvez eu descubra. Talvez nunca seja possível descobrir, desvelar, levantar o toldo, remover qualquer traço de ilusão da ilusão de caminhar.
Seja como for. É só colocar um pé depois do outro.
Um pé depois do outro. Ignorar o peso das pernas. Afinal este corpo é uma máquina que não tem motivos para estar apresentando defeito, ainda não, este corpo viu pouco mais de três décadas, é possível que esteja programado para muito mais. Está? Não sei, não me interessa saber, mas é possível que sim. Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e as sinapses transmitindo a intenção - a intenção não, a determinação, a ordem do cérebro. Esse déspota. Faça, ele diz. Mova-se. E as pernas se movem. Isso. Deve ser assim bem simples. Mova-se como um cão labrador de capa amarela atravessando o sinal conduzido por seu dono.
Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso das minhas pernas.
O guarda-chuva tapa um pedaço do céu e a chuva é fraca, mas insisti em sair de sandálias e meu pé está ficando molhado. Paciência. Não é o mais importante, nem de longe. Que eles estejam secos ou que estejam molhados. Sinto a umidade um pouco fria da pele. Importante é que eles continuem se alternando sobre a calçada, mesmo que lentamente. [......}
Rakushisha - Adriana Lisboa - Escritora carioca, nascida em 1970, morou em Brasília, Paris e Avignon.Estudou Música, Literatura e foi flautista, cantora e professora. Vive em Denver. Este é o seu terceiro romance.Da série língua comum, publicado por Quetzal Editores.- Lisboa - Portugal." Foi na Rakushisha - cabana dos diospiros caídos - , nos arredores de Kioto, que o poeta viajante Matsuo Bashô, imortalizado pelos seus haikai, se hospedou na sua última viagem e redigiu um dos seus diários. E foi no metro do Rio de Janeiro que Haruki e Celina se conheceram. Ele folheava um livro japonês, de cuja ilustração fora incumbido;ela era uma mulher triste e etérea, pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana, que se aproximou dele com curiosidade pelo escrito exótico.[.....]. As vozes dos dois protagonistas e os versos do poeta japonês entretecem-se num registro depurado, a que não falta nem sobra uma só palavra, que faz de Rakushisha um romance haikai.
Para andar, basta colocar um pé depois do outro. Um pé depois do outro. Não é complicado. Não é difícil. Dá para ter em mente pequenas metas: primeiro só a esquina. Aquele sinal com a faixa de pedestres e o homem esperando para atravessar com um guarda-chuva transparente e um cachorro de capa amarela.
O cachorro parece um labrador e olha para mim quando me aproximo.
Tem uma cara afável. Somos ocidentais nós dois, amigo. Se bem que talvez você tenha nascido aqui, não é? Nasceu? No canil de um Criador? Claro, onde mais, você me responde, com a paciência dos labradores.
Eu não nasci aqui. Não sei se você está muito interessado em saber. Sou do outro lado do planeta. Pode-se dizer que vim escondida dentro da bagagem de outra pessoa. É como se eu tivesse entrado clandestina, apesar do visto no meu passaporte. De fininho, para que não me vissem, para que não vissem as coisas invisíveis que eu trazia na mala. Que ninguém me veja ainda, que ninguém suspeite. Nesse sentido sou bem mais ocidental do que você, amigo de capa amarela. Não pertenço a este lugar.
E por que exatamente estou aqui, então, você poderia me perguntar se tivéssemos mais tempo para trocar olhares, se a sua coleira e o seu dono já não fossem te puxando para as suas obrigações - sejam quais elas forem, acompanhar, guiar, divertir.
Não sei muito bem, para ser honesta. Estive reaprendendo a andar. Estou reaprendendo a andar. Depois da tempestade, da era glacial, da grande seca, a gente pode usar a imagem que quiser, ninguém vai se importar muito, afinal quem somos nós se não menos do que anônimos aqui. Abriu-se esta porta. Agora não dá tempo de te contar como aconteceu. E ainda não seis se andar equivale a lembrar, se equivale a esquecer, e qual das duas coisas é o meu remédio, se nenhuma delas, se nenhuma opção existe e se andar é o mal e o remédio, o veneno que tece a morte e a droga que traz a cura. Se vim para lembrar - se vim para esquecer. Se vim para morrer ou para me vacinar. Talvez eu descubra. Talvez nunca seja possível descobrir, desvelar, levantar o toldo, remover qualquer traço de ilusão da ilusão de caminhar.
Seja como for. É só colocar um pé depois do outro.
Um pé depois do outro. Ignorar o peso das pernas. Afinal este corpo é uma máquina que não tem motivos para estar apresentando defeito, ainda não, este corpo viu pouco mais de três décadas, é possível que esteja programado para muito mais. Está? Não sei, não me interessa saber, mas é possível que sim. Supõe-se que os músculos se encontrem todos no lugar, e os ossos por baixo deles, e as sinapses transmitindo a intenção - a intenção não, a determinação, a ordem do cérebro. Esse déspota. Faça, ele diz. Mova-se. E as pernas se movem. Isso. Deve ser assim bem simples. Mova-se como um cão labrador de capa amarela atravessando o sinal conduzido por seu dono.
Posso ir bem devagar, o meu devagar, porque estou sozinha. Posso escolher o ritmo da minha dificuldade de caminhar, o ritmo do peso das minhas pernas.
O guarda-chuva tapa um pedaço do céu e a chuva é fraca, mas insisti em sair de sandálias e meu pé está ficando molhado. Paciência. Não é o mais importante, nem de longe. Que eles estejam secos ou que estejam molhados. Sinto a umidade um pouco fria da pele. Importante é que eles continuem se alternando sobre a calçada, mesmo que lentamente. [......}
Rakushisha - Adriana Lisboa - Escritora carioca, nascida em 1970, morou em Brasília, Paris e Avignon.Estudou Música, Literatura e foi flautista, cantora e professora. Vive em Denver. Este é o seu terceiro romance.Da série língua comum, publicado por Quetzal Editores.- Lisboa - Portugal." Foi na Rakushisha - cabana dos diospiros caídos - , nos arredores de Kioto, que o poeta viajante Matsuo Bashô, imortalizado pelos seus haikai, se hospedou na sua última viagem e redigiu um dos seus diários. E foi no metro do Rio de Janeiro que Haruki e Celina se conheceram. Ele folheava um livro japonês, de cuja ilustração fora incumbido;ela era uma mulher triste e etérea, pedaço de céu recoberto pela fina epiderme humana, que se aproximou dele com curiosidade pelo escrito exótico.[.....]. As vozes dos dois protagonistas e os versos do poeta japonês entretecem-se num registro depurado, a que não falta nem sobra uma só palavra, que faz de Rakushisha um romance haikai.
Nenhum comentário:
Postar um comentário