segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Justiça seja feita - Luis Fernando Veríssimo

     Justiça seja feita: o primo nunca abandonou o Brasílio. Mesmo quando o Brasílio morava na roça com a mulher e os três filhos, em Quintos, parte da Grande Cafundó, e não tinha o que comer, o primo ia visitá-lo para levar notícias. O Brasílio preferia que o primo levasse comida, talvez um dinheirinho, mas o primo sempre dizia que na próxima vez levaria. Novidades é que não faltavam. Em abril de 64, por exemplo, o primo chegou anunciando que trazia uma grande alegria para todos. A família do Brasílio se reuniu, pensando que fosse carne, mas era uma notícia:
     - O Brasil está livre dos comunistas!
     O primo contou tudo o que acontecera, com grande admiração, e se despediu dizendo que na próxima vez traria um feijãozinho. As crianças ficaram brincando de mocinho e comunista no quintal para disfarçar a fome. E naquela noite, antes de dormir, o Brasílio comentou com a mulher que as coisas podiam ir mal, mas pelo menos não pairava mais sobre suas cabeças a ameaça do anarco sindicalismo.
     Na sua visita seguinte o primo chegou um pouco desanimado. Não estava gostando dos rumos que tomava a Revolução, aparentemente dominada por setores reacionários que representavam uma ameaça às liberdades públicas. Começaria um período de arbítrio e obscurantismo, o que assustou as crianças. O Brasílio perguntou se o primo trouxera o feijãozinho, e o primo, já na porta, se desculpou:
     - Ando tão preocupado com as instituições que esqueci.
     Brasílio e a família - mulher e seis filhos - tiveram que ir para a cidade, procurar emprego, e a visita seguinte do primo já foi no barraco. O primo estava eufórico. Estava acontecendo um milagre  econômico no Brasil. Era o país que mais crescia no mundo. Em breve, como dizia o Delfim, o bolo seria repartido entre todos. A família do Brasílio começou a salivar e o primo pensou que fosse de orgulho pelo PIB. Depois deu um tapa na testa. Com toda aquela agitação, Copa do Mundo e tudo, esquecera de trazer comida. Ficava para a próxima visita.
     O primo teve alguma dificuldade para encontrar Brasílio, a mulher e os nove filhos para visitá-los, depois que foram despejados do barraco. Finalmente encontrou a ponte certa. Chegou dizendo que viera compartilhar uma coisa com eles.
     - Comida?
     - Não. Minha angústia com o nosso endividamento externo. Nossa soberania está ameaçada.
     Depois que o primo saiu, prometendo que na próxima vez traria comida, o ambiente ficou carregado embaixo da ponte. Nossa soberania ameaçada. Puxa. E aquelas outras coisas de que o primo falara. Corrupção nas altas esferas. Ameaça de retrocesso no processo de abertura. Chato!
     Quando o primo apareceu de novo, estava vibrando.
     - Finalmente! O que vocês esperavam!
     - Oba!
     Brasílio, a mulher e os doze filhos foram buscar as panelas, gamelas, sacos, canecas, tudo o que podiam para receber a comida. Mas não era comida. Era a notícia da vitória iminente do Tancredo. Houvera um movimento nacional pelas eleições diretas. Depois de um clamor nacional pró Tancredo e contra Maluf. Era o começo de novos tempos!
     - Trouxe comida? - perguntou o Brasílio.
     Aí o primo se impacientou.
     - Todas estas coisas acontecendo no país e você só pensa em comida?!


Do Livro: A Mãe do Freud - Luis Fernando Veríssimo.

sábado, 1 de outubro de 2011

As Pastoras - Do Livro a Velha Guarda da Portela- João Baptista M.Vargens e Carlos Monte

     Provei do famoso feijão da Vicentina
     Só quem é da Portela
     É que sabe que a coisa é divina.
Paulinho de Viola
   
     AS PASTORAS

     Dia 8 de dezembro! Salve Nossa Senhora da Conceição!Oraeeuerô minha mãe Oxum!
     No dia 8 de dezembro de 1934, exatamente 41 anos antes de Candeia e seus companheiros fundarem o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Samba Quilombo, João Petra de Barros entrou no estúdio da Odeon para gravar a marcha rancho Linda Pequena, de Noel Rosa e Braguinha. Informam João Máximo e Carlos Didier que a obra fora composta no Café Papagaio, situado na rua Gonçalves Dias. Os compositores fizeram a música calcados no ritmo de um rancho que saía pelas ruas de Vila Isabel no Dia de Reis.
 
     A estrela d'alva
     No céu desponta
     E a lua anda tonta
     Com tamanho esplendor
     E as moreninhas
     Pra consolo da lua
     Vão Cantando na rua
     Lindos versos de amor

     Linda pequena
     Pequena que tem a cor morena
     Tu não tens pena
     De mim
     Que vivo tonto com o teu olhar
     Linda criança
     Tu não me sais da lembrança
     Meu coração não se cansa
     De sempre e sempre te amar

     A música não fez sucesso . Em 1938 um ano após a morte de Noel, Braguinha apresentou  em um concurso promovido pelo DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda, na Feira de Amostras. A letra foi um pouco alterada:

     A estrela d'alva
     No céu desponta
     E a lua anda tonta
     Com tamanho esplendor
     E as pastorinhas
     Pra consolo da lua
     Vão cantando na rua
     Lindos versos de amor


     Linda pastora
     Morena da cor de Madalena
     Tu não tens pena
     De mim
     Que vivo tonto com o teu olhar
     Linda criança
     Tu não me sais da lembrança
     Meu coração não se cansa
     De sempre e sempre te amar

     O título de Linda pequena passou a Pastorinhas e a canção foi a vencedora do concurso. Sílvio Caldas imortalizou a obra gravando  acompanhado pela Orquestra de Napoleão e seus Soldados Musicais, nome que sugere a efervescência belicosa que impregnava a atmosfera mundial na época.
     A marcha, que provavelmente foi composta para os grupos de pastoris, imperou no carnaval seguinte e se perpetuou entre os clássicos das canções momescas.
     Nas primeiras décadas do século XX, alguns dias antes do Natal, grupos de moçoilas e rapazes, esses em menor número, caminhavam pelas ruas da cidade cantando e dançando, festejando o nascimento de Jesus Cristo. À frente do cortejo, uma jovem vestindo túnica branca, segurava uma vara que trazia na ponta uma estrela. Representava a estrela guia que orientou os Reis Magos a encontrarem a estrebaria onde nasceu o Menino Deus. Logo depois vinha a figura do Velho. De barba e cabelos brancos, apoiado em um cajado, ele cantava:
     Caminhemos, caminhemos
     A lapinha de Belém
     Visitar a Deus Menino
     Que salva o mundo vem
 
     As pastoras, balançando os corpos sestrosos ao ritmo da música, repetiam os versos entoados pelo Velho.
     Os desfiles dirigiam-se às casas de amigos. Diante dos presépios, as pastoras em roda, adoravam o Recém nascido, entoando cânticos em alusão ao evento.
     Jota Efegê, relembra que um momento bem humorado do ritual era o "Namoro do Velho". Nesse instante, o ancião insinuava-se para as pastoras, dirigindo-lhes galanteios, e elas o repeliam:
 
     Sai daqui, ó velho
     Velho impertinente
     Não faça vergonha
     No meio da gente
   
     Após muita insistência do Velho e repúdio das pastoras, cessava a música e os anfitriões distribuíam castanhas, figos, rabanadas e passas entre os participantes.
     Sob o aplauso da platéia, após o apito do Mestre, os músicos deixavam a casa, acompanhados das pastoras, arrastando os pés e cantando.
 
     Caminhemos, caminhemos
     À lapinha de Belém
     Visitar o Deus Menino
     Que salvar o mundo vem
 
     E seguiam de casa em casa, repetindo a cerimônia.
     [......] Em Oswaldo Cruz, as pastorinhas se encontravam na casa de dona Martinha, madrinha da Portela escolhida por Paulo Beijamim de Oliveira, de onde iniciavam o cortejo.
     As pastorinhas dos festejos natalinos migraram para os ranchos carnavalescos, que incorporaram muitas características dos pastoris: o compasso rítmico, as castanholas, as marchas. As pastoras formavam o coro dessas agremiações.

Punhados do Livro A Velha Guarda da Portela- João Baptista M Vargens e Carlos Monte. "A Portela não foi fundada; Nasceu por obra e graça do Espírito Santo"- Antonio Rufino dos Reis.