quarta-feira, 2 de maio de 2012

Punhados de: CORCÉIS CELESTES - Bruce Chatwin

     O imperador Wu-ti (145-87 a.C) foi o mais espetacular ladrão de cavalos da História. Sonhava possuir algumas éguas e garanhões que pertenciam a um monarca obscuro dos confins do mundo conhecido e quase deu cabo da China na sua ânsia de os apanhar.
     [.....] De todos os soberanos que clamavam o Mandato do Céu, Wu-ti encontrava-se entre os menos modestos.
     [.....] No entanto, o seu reino, em relação ao do seu predecessor, Shih-Huang-ti, o Grande Unificador, constituía uma melhoria. Não perseguia os intelectuais nem lhes queimava os livros, preferindo manipular os seus súbditos sem ter de os massacrar. Como todos os fleumáticos, era vítima da dúvida. Porque é que o rio Amarelo havia de querer rebentar com as represas construídas pelos homens?
     - Estás a violar as leis da natureza! - gritou à inundação.
     [.....] A civilização chinesa, como a do Egipto, nasceu nas margens dos grandes rios. Segundo o ritual, o imperador era a Autoridade- Chefe das Águas;o seu governo, uma máquina para controlar a mão de obra; os seus celeiros, o banco nacional, que podia tão bem alimentar quanto esfomear o povo.
     Os decretos imperiais costumavam começar assim: << O mundo funda-se na agricultura>>; o mundo estável - o único concebível - dependia de milhões de pessoas agrilhoadas à terra num trabalho árduo e rotineiro. Daí o horror dos funcionários quando a máquina emperrou. E o seu temor a pensarem nos nómadas às portas das fronteiras do norte. E a Grande Muralha - construída menos para se defenderem dos invasores do que para manterem o seu próprio povo fechado lá dentro.
     Um mar de ervas estende-se para oeste, da Manchúria à planície húngara. Ao longo do horizonte ondulante, nómadas a cavalo conduziam o gado em busca de pastagens. No inverno, abrigavam-se do buran, ou o vento branco invernal, de encontro às montanhas; na primavera, repousavam quando as flores atapetavam o solo. Eram homens corpulentos , colados ao cavalo desde a infância, rostos vermelhos como as suas botas de cabedal. Os elementos que os endureciam também lhes davam uma atitude de espírito inflexível. O movimento perpétuo era o seu credo, não apenas para evitar as desastrosas consequências de ficar quieto, mas como um fim em si. Aos seus olhos o homem nascera para migrar, o sedentarismo era uma perversão de degenerados e isso de lavrar a terra para a cultivar, um crime.[....] .A migração constituía o seu ritual. E a sua música era o uivo dos cães, o tinir dos guizos e o martelar das patas dos cavalos.
     No reinado de Wu-ti, os nómadas que rondavam as fronteiras setentrionais da China eram os Hsiung-nu, os quais voltariam a aparecer sob o nome de Hunos, quatro séculos mais tarde para destruir o Império Romano.
     [.....] Wu-ti tinha de arranjar cavalos para derrotá-los. Cavalos mais velozes que os póneis da estepe, pois naqueles tempos, anteriores aos bombardeamentos aéreos, o poder de qualquer império dependia da cavalaria.
     [.....] A quase cinco mil quilómetros de distância, do outro lado, do Tecto do Mundo, encontravam-se os estábulos do rei de Ferghana. Wu-ti tinha de apossar-se daqueles cavalos a todo custo.Todas as curiosidades do Ocidente, os prestidigitadores ou os ovos de avestruz não valiam nada comparados com as Crias Celestes. Tentou, em primeiro lugar, a diplomacia, oferecendo um cavalo de ouro em troca dos de carne e osso. Mas o povo de Ferghana já se cansara dos presentes chineses e iludiu a questão.
     [.....] Wu-ti soltou todos os criminosos do seu reino e mandou domadores de cavalos e engenheiros hidráulicos para desviar o curso dos rios de Ferghana, organizando igualmente um sistema de abastecimento de arroz para toda a viagem. [....] O seu exército cercou a capital de Ferghana. Os habitantes liquidaram o seu velho e irritável rei e prometeram dar a Li-Kuang-li (general no comando das tropas de Wu-ti), os seus melhores corcéis celestes, se ele levantasse o cerco. Escolheu trinta animais de reprodução ( com a promessa de que todos os anos seriam enviados outros dois) e três mil outros de raça inferior.
     [.....] Que Cavalo Maravilhoso era esse que suava sangue? Após tanto tempo passado, é difícil de dizer. Mas uma coisa é clara: os reis de Ferghana tinham capturado um animal de sangue quente, o que significa , como qualquer entendedor pode confirmar, que provinha do Próximo Oriente. Algures na África do Norte ou no Sudoeste Asiático, tinha existido outrora o antepassado do cavalo árabe.
     [.....] Na mitologia chinesa, o cavalo era o << veículo >> mágico que escoltava os imperadores lendários até o paraíso, algures no Extremo Ocidente. Era o << amigo do dragão>> e <>. Wu-ti procurou esse animal durante toda a sua vida. Em 121 a.C um estranho cavalo tinha emergido do rio Ordos, mas acabou por revelar-se uma decepção. Quando finalmente os verdadeiros corcéis celestes chegaram à China, Wu-ti deve ter tido o pressentimento da sua partida iminente. <> E foi por isso que manteve os cavalos perto do palácio, prontos para a viagem com que sonhara.
     Uma manhã, quando todos os presságios se revelassem propícios, sairia dos seus aposentos. Uma doce melodia estaria a tocar. o imperador subiria então para o carro puxado pelos cavalos do vento. Subiriam no ar suavemente e voariam rumo à terra da paz eterna. A rainha mãe do Ocidente viria acolhe-lo às muralhas de jade e dar-lhe-ia um dos celebrados pêssegos que amadureciam todos os seis mil anos. E a pele enrugada do imperador voltaria a recuperar a maciez da juventude......


Do Livro O Que Faço Eu Aqui? Bruce Chatwin- (1940-1989). A prosa "chatiwiniana", no seu livro póstumo; uma "selecção pessoal" de ensaios, retratos, meditações, relatos de viagens, reunidas durante o seu terrível último ano de vida>>Salman Rushdie, The Observer

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