quarta-feira, 24 de novembro de 2010

O Rabino - Isaac Babel

  " Tudo é mortal. Apenas a mãe é destinada à imortalidade. E quando a mãe já não está entre os vivos, deixa uma memória, que até hoje ninguém ousou macular. A memória da mãe nutre em nós uma compaixão semelhante ao oceano insondável alimenta os rios que dissecam o universo.
  Tais as palavras de Gedali. Ele as pronunciou com grande solenidade. A tarde morria, rodeando-o com a névoa rósea da tristeza.
  "O apaixonado edifício do hassidismo teve suas portas e janelas arrombadas, porém é tão imortal como uma alma de mãe. Com órbitas gotejantes, o hassidismo ainda permanece nas encruzilhadas das turbulentas rajadas da História".
  Assim falou Gedali. E terminadas as suas preces na sinagoga, levou-me à presença do Rabino Motale, o último da dinastia Chernobyl.
  Fomos seguindo, Gedali e eu, a rua principal. Brancas igrejas cintilavam à distância, semelhantes a campos de trigo sarraceno. O motor de uma carreta de canhão ronronava a um canto. Duas mulheres ucranianas, grávidas, saíram de um portão fazendo tilintar seus colares de moedas, e sentaram-se num banco. Surgindo do conflito chamejante do por do sol , uma estrelinha tímida cintilou, e a paz, a paz do Sabá pousou sobre os tetos desvairados do gueto de Jitomir.
  - É aqui - murmurou Gedali, apontando para um alto edifício com a fachada arruinada.
  Entramos num quarto de paredes rígidas, vazio, como um necrotério. O Rabino Motale estava sentado a uma mesa, rodeado de mentirosos e possessos. Trajava um roupão branco, preso à cintura por um cordão, e tinha à cabeça um gorro de arminho. Sentado de olhos fechados, enterrava os dedos finos na barba amarelada.
  - De onde vem o judeu?- perguntou, erguendo os olhos.
  - De Odessa - respondi
  - Cidade temente a Deus - disse o Rabino -a estrela de nosso exílio, a fonte involuntária de nossa   desolação. Em que se ocupa o judeu?
  - Estou pondo em versos as aventuras de Hersch de Ostropol
  - Grande tarefa - murmurou o rabino, e fechou as pálpebras - O chacal, quando uiva, é porque tem fome, cada louco tem loucura suficiente para ficar desalentado, e somente o sábio pode romper com seu riso o véu que oculta o ser. Que estudou o judeu?
  - A Bíblia.
   E que procurava o judeu?
  - Alegria.
  - Reb Mordecai - disse o saddik, agitando a barba - , deixe o rapaz sentar-se à mesa, deixe-o comer com todos os outros judeus, nesta noite de Sabá, deixe-o regozijar-se por estar vivo, e não morto, deixe-o bater as mãos quando seus vizinhos dançarem, deixe-o beber vinho, se lhe derem algum.
  E adiantou-se para mim Mordecai, um antigo bufão, um velho corcunda, de pálpebras viradas, do tamanho de um garoto de dez anos.
  - Oh, meu caro jovem, tão jovem - disse o andrajoso Reb Mordecai, piscando os olhos para mim- Quantos ricos imbecis conheci em Odessa! E quantos sábios sem um níquel conheci, também em Odessa. Sente-se à mesa, rapaz, e beba o vinho que não lhe será dado.
  Todos nós - possessos, mentirosos, indolentes- nos sentamos ao lado uns dos outros. A um canto, alguns judeus espadaúdos, com ar de pescadores e apóstolos, gemiam sobre os seus livros de oração. Gedali com seu fraque verde arrastando no chão, cochilava junto à parede, parecendo um pequeno pássaro cintilante. E, subitamente, notei um jovem ao seu lado, um jovem com o rosto de Spinoza, a fronte potente de Spinoza, e o rosto languido de uma freira. Fumava, tremendo, como um preso recapturado que é conduzido de volta à cela.
  O esfarrapado Reb Mordecai arrastou-se até ele, puxou-lhe o cigarro da boca e precipitou-se de novo para mim.
  - Este é Elias o filho do rabino - disse com voz rouca, aproximando mais de meu rosto os olhos injetados de sangue - o filho amaldiçoado, o derradeiro filho, o filho rebelde.
Mordecai ameaçou o jovem com o punho e cuspiu-lhe no rosto.
  - Abençoado seja o Senhor- ecoou a voz do Rabino Motale, que começou a partir o pão com seus dedos simiescos.- Abençoado seja o Senhor Deus de Israel, que nos escolheu entre todas as Nações do Mundo.
  O rabino benzeu o alimento, e sentamo-nos à mesa. Para além da janela, abriam-se as mandíbulas selvagens da guerra. Em meio ao silêncio e à oração, o filho do rabino continuava a fumar um cigarro após o outro.Terminada a ceia fui o primeiro a erguer-me.
  - Meu caro jovem, tão jovem ainda - resmungava Mordecai, atrás de mim, puxando-me pelo cinto- se não existisse ninguém no mundo, senão os maus ricos e os errantes, necessitados, como viveriam os homens santos?
  Dei ao velho algum dinheiro e saí para a rua. Despedi-me de Gedali, e dirigi-me à estação. Ali, no trem de propaganda o primeiro Batalhão de Cavalaria, esperava-me o clarão de luzes inumeráveis, o brilho mágico da estação de rádio, o trabalho obstinado dos prelos e meu artigo, ainda por terminar, para o Soldado Vermelho.



 Um dos Contos do Livro A Cavalaria Vermelha,um relato, sem subterfúgios da campanha russo-polonesa de 1920. Isaac Babel, mais brilhante escritor da geração literária surgida com a Revolução Russa. Babel opôs ao lirismo dos seus contemporâneos uma objetividade desconcertante. Narrativas curtas , instantâneas a clarear as cenas trágicas do front.Ele participou da campanha russo-polonesa, servindo na Cavalaria de Budieni.

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