Aqueles de nós que leram Os miseráveis nos tempos de outrora (quem tem hoje a paciência de aturar Victor Hugo?), lembram-se de que foi por causa do roubo de um simples pão que Jean Valjean esteve dezenove anos nas galés. Pequenas causas, grandes efeitos. Um espírito objectivo, desses que tudo pesam e medem , escrupulosos até a mínima caspa, dirá que se Jean Valjean tivesse cumprido resignadamente a pena que a sociedade lhe impusera, não teria estado preso mais do que cinco anos. O mal estava na sua rebeldia, na absurda ânsia de liberdade que o levou a tentar fugir por quatro vezes. Enfim, casos tristes.
Vêm-me estas reflexões a talhe no momento em que reconstituo na memória a minha desamparada deambulação pela grande sala do Museu Britânico que contém as esculturas arrancadas ao Parténon. Digo, desamparada deambulação porque não acredito em suficiência bastante que dê ao visitante um verniz sequer de serenidade. Ou então esse visitante é estúpido.Mesmo um cego, com seus olhos digitais, estremecerá de comoção se passar os dedos pelas figuras antiquíssimas dos frisos e das métopes. Imagine-se pois que o privilégio de uns olhos intactos, ainda que míopes, pode dar.
Mas eu estava falando de Jean Valjean e do pão que não era seu e que ele roubou. E estou diante das esculturas do Parténon. E tenho a rodear-me o conforto do aquecimento inglês. Mas sinto frio.
O erro, afinal, está em roubar pouco. Dezenove anos passou Jean Valjean nas galés, e depois que saiu vejam lá quantas desgraças ainda lhe caíram em cima, com aquele patife do Javert a persegui-lo, consoante Victor Hugo nos vai relatando, tintim por tintim. E o Thomas Bruce, diplomata, homem decerto finíssimo, nascido para mal da Grécia, com manhas de salteador, vai e saqueia a Acrópole de Atenas, arranca pedras com dois mil e quinhentos anos, leva tudo para Londres - e ninguém o perseguiu, ninguém lhe fez mal e até pelo contrário, e hoje está na história como um grande homem, ao passo que o Jean Valjean só por causa do pão foi o que se viu, e para não ir mais longe, aí está o nosso José do Telhado que até roubava os ricos para dar aos pobres.
Digam-me agora como se pode entender este mundo. Vagueio perplexo pela sala enorme e nos primeiros minutos nada consigo ver. Penso continuamente: "Foi isto que eles roubaram? Toda a gente está de acordo? E não se faz nada?Não se institui um tribunal supremo para o julgamento e punição dos grandes latrocínios?Não se dá o seu a seu dono?".Depois(que remédio!) serenei, entreguei-me à contemplação das panateneias e dos cavaleiros, das degoladas figuras dos deuses, das lutas entre os centauros e o lápitas. Dei lentamente duas voltas à sala, sabendo-me cúmplice a partir desse momento, e também consciente das minhas fracas forças, que de todo me impediriam de agir.
Que poderia eu fazer? Protestar no Hyde Park? organizar um comício em Trafalgar Square? marchar sobre Bucingham Palace? alistar-me no exército secreto do Ira? Eu , pobre português ali perdido, que nem sequer vou reconquistar Olivença? Encolhi os ombros, saí da grande sala, e fui-me às outras colecções com esta insaciável fome de conhecimentos que algumas indigestões intelectuais me tem causado. E vi que tudo lá estava: as esculturas egípcias, as múmias, a pedra de Roseta, os leões assírios de cabeça humana, objectos, armas, utensílios, todo o mundo antigo arrumado e etiquetado - uma exemplar lição de arte e de história que me encheu de respeito pelas cabeças inglesas responsáveis.
E foi ali que se fez luz no meu turvado espírito. Reparara eu que nos museus ingleses ninguém está à entrada, de bilhetes em riste, a fazer cobrança. Há sim, espalhadas pelas salas umas caixas de tampo de vidro, com ranhadura adequada, aonde o visitante é convidado a lançar a sua oferta, e onde se dá à leitura um aviso que diz destinar-se o dinheiro à compra de obras de arte para o museu. Tudo isto eu vira, e achara curioso e civilizado, sem mais.
Mas, repito, O Museu Britânico foi a minha Estrada de Damasco. Ali compreendi que os ingleses envergonhados de tanto roubo estimulado ou consentido, procuravam fazer esquecer as suas malfeitorias estendento agora a mão à caridade pública. Compreendi que os coitados viviam atormentados pelos remorsos - e tive pena. Sentimental, com o olho humedecido pela lágrima lusitana, abri o porta-moedas, extraí meia libra generosa e enfiei-me na caixa.
Depois disto, posso anunciar a toda a gente que a Inglaterra não voltará a cair em tentação. Está a juntar dinheiro para comprar o Museu do Louvre, com todo o recheio. Em boa e devida forma, e pelo seu justo valor.
Desculpará o leitor a brincadeira: a culpa é deste mundo louco em que ambos somos obrigados a viver.
Meditação sobre o Roubo- José Saramago- Crônica do Livro A Bagagem do Viajante- " Uma viagem pela selva da vida contemporânea.