segunda-feira, 14 de novembro de 2011

MANOELA - Júlio Dantas

     Cinco médicos amigos, reunidos num gabinete do Braganza - o antigo Braganza, que Eça de Queiroz comparava à tristeza opulenta dum pantheón - combinaram contar uns aos outros, durante o jantar, a maior gaffe cometida na sua vida de clínicos. O primeiro - o mais novo - foi o professor. Passou a mão pela barba, umedeceu os lábios com um gole de Champagne, e, brincando com a fita do monóculo, principiou:

     - Não sei se vocês conheceram o dr Valadares, jogador de fundos, muito assíduo na Bôlsa, tipo alto, perfil semita, pernas enormes, uma orquídea vermelha no casaco, umas mãos felpudas e cheias de anéis de brilhantes, "monsieurs qui travaillait dans les femmes du monde"; e de quem se falou muito, em tempo, com a mulher do Conde de Z. Pois bem. Êsse homem, aos cinquenta anos, em seguida a um golpe financeiro infeliz relacionado com a baixa súbita das ações das minas de oiro de Kaslo Slocan, meteu uma bala na cabeça. Sobrevieram acidentes de compressão, e foi preciso operá-lo. Chamou-se o professor F., de quem eu era então um dos internos na clínica hospitalar. A intervenção foi feita em casa do doente, um rico palacete inglês à Buenos Aires ( nem vocês calculam que admirável coleção de potiches da dinastia dos Ming de cinco côres!). O Bruges cloroformizou, e eu ajudei. Trepanamos o homem. Havia um forte derrame sanguíneo intra-craniano. Nos primeiros dias, tudo correu excelentemente. Mas quando já supúnhamos o doente livre de perigo, aparecera, de súbito sintomas terríveis: agitação, febre, convulsões generalizadas, delírio, todo o cortejo duma meningo-encefalite traumática. Mme Valadares - uma dessas mulheres serenas, majestosas, olímpicas, tão raras entre as portuguêsas, mais grandiosa do que bela, mais triste do que distinta - quis que um médico ficasse de noite junto do marido. O escolhido fui eu. Instalei-me num Maple, aos pés da cama, rodeei-me do instrumental necessário, não consenti junto de mim senão uma rapariga belga, bonne dos pequenos, e pedi a Mme Valadares, esgotada por três noites de vigília e de comoções, que se recolhesse um pouco no seu quarto. Condescendeu a ficar sôbre o divã, no escritório, com a condição de que eu iria chamá-la ao menor incidente que se produzisse. Vocês sabem o que são para todos nós, no princípio de nossa carreira, estas longas noites, à cabeceira dos operados, e calculam com que escrupulosa sentimentalidade procuraria desempenhar-me da minha missão - eu, pobre médico inexperiente, que punha ainda no exercício da clínica muito mais coração do que cabeça. As primeiras horas da noite passei-as a pretender conversar com a bonne, uma flamenga de Alost, deslavada e loira, que a tôdas as minhas perguntas respondia invariàvelmente oui ou non. Depois o doente absorveu-me por inteiro. A agitação aumentou, a temperatura subiu a 40 e dois décimos, instalou-se uma hemiplegia esquerda, e o desgraçado, coberto de suor, arquejando numa respiração estertorosa, começou a gemer, a implorar, a chamar:
     - Manoela! Manoela!
     Outro colega, mais calejado do que eu, não se teria ocupado excessivamente com o aspecto sentimental dêsse fait divers, e limitar-se-ia a cumprir, com fria serenidade, o seu dever de médico. Eu impressionei-me, enervei-me, julguei-me na obrigação moral de ser o intérprete da súplica do doente; fiel ao compromisso tomado com Mme Valadares, pedi à bonne que a fôsse chamar; e confesso que não percebi a razão por que a rapariga, impassível e chata como certas Virgens flamengas de Quentin Metzys, me respondeu, franzindo a bôca numa expressão evidentemente repreensiva, como se eu tivesse dito uma inconveniência:
     - Oh! Non, monsieur!
     Ela não quis ir - fui eu . Atravessei um corredor, entrei no escritório. Mme Valadares, que estava encostada num divã com um plaid pelos joelhos, quis saber o que havia. Disse-lhe que o marido a chamava. Ela olhou-me, fixamente, compôs os cabelos, que pareciam mais negros ainda na penumbra doirada da sala, ergueu o seu busto magnífico, digno de amamentar os catorze filhos de Niobe, e perguntou num sorriso doloroso:
     - O doutor está certo disso?
     - Sim, minha senhora. Chamou por V.Exa.
     - Está bem.
     Quando entramos no quarto, Mme Valadares, aproximou-se em silêncio, da cabeceira do moribundo.Êle viu-a, ou sentiu-lhe o perfume, estendeu para ela o braço, que a paralisia não tinha inutilizado, agarrou-lhe a mão, levou-a a bôca, cobriu-a de beijos, e, em delírio, com os olhos vidrados, as lágrimas a rolarem-lhe pelas faces, repetiu, duas, três, muitas vêzes:
     - Manoela! Manoela! Meu amor!
     Não sei se já lhes aconteceu, num dêstes dramas pungentes de família, não compreender a expressão paradoxal de certas fisionomias que rodeiam um doente ou um cadáver.Foi o que me sucedeu a mim diante daquela singular mulher em cuja face dura, ao mesmo tempo dolorosa e soberba, sarcástica e revoltada, eu julguei adivinhar um mundo de contraditórios sentimentos. Durante talvez meia hora, ela conservou-se de pé junto do leito, estátua de orgulho e dor, abandonando as mãos, com visível repugnância, aos beijos do marido. Em seguida, o doente caiu em coma. Mme Valadares libertou pouco a pouco a mão da pressão viscosa do agonizante, encarou-me, baixou ligeiramente a cabeça, e, sem olhar o marido saiu do quarto. Então uma dúvida terrível atravessou-me o espírito.
     - Madame Valadares não se chama Manoela? - perguntei à bonne, cuja cabeça dum loiro quase branco, vigiava da sombra.
     - Non, Monsieur, Madame s'appelle Jeanne.
     Compreendi tudo, meus amigos. Tinha feito a minha primeira gaffe. Manoela - soube-o depois era a encantadora mulher do Conde de Z, que endoideceu meia Lisboa, e que anda agora por aí, velha, quase cega, vestida de luto, encostada a uma bengala."



Júlio Dantas, escritor português, nascido em 1877. É o autor da famosa "Ceia dos Cardeais" e de "Rosas de todo o ano". Iniciou-se na vida literária com a poesia. Em 1806, escreveu o livro de poesias "Nada". Em prosa, deixou uma série de livros: "Apolo", "Espadas e Rosas", "Como elas Amam". Dedicou-se também ao teatro. Algumas de suas peças são: " O que morreu de amor", " Viriato Trágico", D.João Tenório". " Manoela é um pequenino conto, que se encontra no livro "Abelhas Doiradas".
     

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