Gabriel Orozco- Black Kites, 1997
No dia seguinte ninguém morreu.O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os aspectos justificado, basta que nos lembremos de que não havia notícia nos quarenta volumes da história universal, nem ao menos um caso para amostra, de ter alguma vez ocorrido fenómeno semelhante, passar-se um dia completo, com todas as suas pródigas vinte e quatro horas, contadas entre diurnas e nocturnas, matutinas e vespertinas, sem que tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela palavra nada. Nem sequer um daqueles acidente de automóvel tão frequentes em ocasiões festivas, quando a alegre irresponsabilidade e o excesso de álcool se desafiam mutuamente nas estradas para decidir sobre quem vai conseguir chegar à morte em primeiro lugar.
[......] A tarde já ia muito adiantada quando começou a correr o rumor de que, desde a entrada de novo ano, mais precisamente desde as zero horas deste dia um de janeiro em que estamos, não havia constância de se ter dado em todo o país um só falecimento que fosse.
[......] Embora a palavra crise não seja certamente a mais apropriada para caracterizar os singularíssimos sucessos que temos vindo a narrar, porquanto seria absurdo, incongruente e atentatório da lógica mais ordinária falar-se de crise numa situação existencial justamente privilegiada pela ausência da morte, compreende-se que alguns cidadãos, zelosos do seu direito a uma informação veraz, andem a perguntar-se a si mesmos, e uns aos outros, que diabo se passa com o governo, que até agora não deu o menor sinal de vida.É certo que o ministro da saúde, interpelado à passagem no breve intervalo entre duas reuniões, havia explicado aos jornalistas, que, tendo em consideração a falta de elementos suficientes de juízo, qualquer declaração oficial seria forçosamente prematura. Estamos a coligir as informações que nos chegam de todo o país, acrescentou, e realmente em nenhuma delas há menção de falecimentos, mas é fácil imaginar que, colhidos de surpresa como toda a gente, ainda não estejamos preparados para enunciar uma primeira ideia sobre as origens do fenómeno e sobre as suas implicações, tanto as imediatas como as futuras.
[.....] Nem tudo é festa, porém, ao lado de uns quantos que riem, sempre haverá outros que chorem, e às vezes, como no presente caso, pelas mesmas razões. Importantes sectores profissionais seriamente preocupados com a situação, já começaram a fazer chegar a quem de direito a expressão do seu descontentamento. Como seria de esperar, as primeiras e formais reclamações vieram das empresas do negócio funerário. Brutalmente desprovidos da sua matéria-prima, os proprietários começaram por fazer o gesto clássico de levar as mãos à cabeça, gemendo em carpideiro coro.E agora que irá ser de nós, mas logo perante a perspectiva de uma catastrófica falência que a ninguém do grémio fúnero pouparia, convocaram a assembleia geral da classe, ao fim da qual, após acaloradas discussões, todas elas improdutivas porque todas sem excepção, iam dar com a cabeça no muro indestrutível da falta de colaboração da morte, essa a que se haviam habituado, de pais a filhos, como algo que por natureza lhes era devido, aprovaram um documento a submeter à consideração do governo da nação, o qual documento adoptava a única proposta construtiva, construtiva sim, mas também hilariante, que havia sido apresentada a debate. Vão-se rir de nós, avisou o presidente da mesa, mas reconheço que não temos outra saída, ou é isto ou será a ruína do sector. Informava pois o documento que, reunidos em assembleia geral extraordinária para examinar a gravíssima crise com que se estavam debatendo por motivo da falta de falecimentos em todo o país, os representantes das agências funerárias, depois de uma intensa e participada análise, durante a qual sempre havia imperado o respeito pelos supremos interesses da nação, tinham chegado à conclusão de que ainda era possível evitar as dramáticas consequências do que sem dúvida irá passar à história como a pior calamidade colectiva que nos caiu em cima desde a fundação da nacionalidade, isto é, que o governo decida tornar obrigatórios o enterramento ou a incineração de todos os animais domésticos que venham a defuntar de morte natural ou por acidente, e que tal enterramento ou tal incineração, regulamentados e aprovados, sejam obrigatoriamente levados a cabo pela indústria funerária, tendo em contra as meritórias provas prestadas no passado como autêntico serviço público que têm sido, no sentido mais profundo da expressão, gerações após gerações.O documento continuava. Solicitamos ainda a melhor atenção do governo para o facto de que a indispensável reconversão da indústria não será viável sem vultosos investimentos, pois não é a mesma cousa sepultar um ser humano e levar à última morada um gato ou um canário, e porque não dizer um elefante de circo ou um crocodilo de banheira, sendo portanto necessário reformular de alto a baixo o nosso know how tradicional, servindo de providencial apoio a esta indispensável actualização a experiência já adquirida desde a oficialização dos cemitérios para animais, ou seja, aquilo que até agora não havia passado de uma intervenção marginal da nossa indústria, ainda que, não o negamos, bastante lucrativa, torna-se-ia em actividade exclusiva, evitando-se assim, na medida do possível, o despedimento de centenas senão milhares de abnegados e valorosos trabalhadores que em todos os dias da sua vida enfrentaram corajosamente a imagem terrível da morte e a quem a mesma morte volta agora imerecidamente as costas.
As Intermitências da Morte - José Saramago- De repente, a morte suspendeu suas atividades no país. A nação se embandeirou; tinha sido escolhida para a imortalidade, depois de milênios de sofrimento e sujeição à "indesejada das gentes". Ano Novo, vida eterna, pois desde 1º de janeiro ninguém mais morria nesse estranho canto do mundo inventado por José Saramago, uma fábula sobre os caprichos da figura macabra e ossuda que segura os fios da vida de cada um. Companhia das Letras-2006
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